quinta-feira, 7 de novembro de 2013

UM PAÍS DE PEDÓFILOS



No dia 30 de Dezembro de 2003 foi conhecida a acusação do processo da alegada rede de pedofilia que operava na Casa Pia de Lisboa. Ou seja, a partir daquela data o inquérito judicial foi tornado público e todos os jornalistas passaram a poder aceder aos documentos e confirmar quais as provas que existiam, efectivamente, contra os arguidos. E aquilo que se encontrou foi, para mim, uma desilusão. Ao contrário do que eu desejava, tudo o que escrevera sobre a falta de provas até então era verdade. Ou seja, não havia no processo uma única prova material contra os arguidos. Toda a acusação foi construída com base nos depoimentos de três dezenas de indivíduos, maiores de idade, sendo que apenas um grupo muito restrito, composto por oito jovens, acusavam os 10 arguidos que o Ministério Público queria levar a julgamento como fazendo parte da alegada rede de pedofilia, a saber: Carlos Cruz, Carlos Silvino, Ferreira Diniz, Gertrudes Nunes, Francisco Alves, Herman José, Hugo Marçal, Jorge Ritto, Manuel Abrantes e Paulo Pedroso (na fase de instrução Francisco Alves, Herman e Pedroso saltaram fora do processo e não se sentaram no banco dos réus).

E OS OUTROS?

Mas a verdade é que havia muitos nomes no processo, acusados das mesmas práticas que aquela dezena de arguidos, muitos deles indiciados precisamente pelas mesmas testemunhas que levaram à condenação dos actuais presos, mas que nunca foram interrogados nem pela PJ, nem pelo Ministério Público. E havia uma carta anónima, que ficou no processo principal – apesar de existir um anexo apenas para as cartas anónimas – a envolver Jorge Sampaio, o então Presidente da República, no processo. Se existiam dúvidas de que alguma coisa estava mal na investigação, elas começaram a tornar-se certezas. Tanto mais que a acusação toda é um mero exercício de “copy/paste”, assim como seria, meses mais tarde, a decisão de instrução.
Mas a existência da carta anónima a denunciar Jorge Sampaio, e não só, provocou um “terramoto” no País e a sua divulgação, feita por mim, no Jornal de Notícias, levou mesmo a que o Presidente da República fizesse um comunicado à Nação, dias depois. O que estava em causa não era a substância da carta em si, mas o facto de ela estar no processo e não ter sido mandada destruir. Mais grave ainda, o Presidente da República só poderia ser alvo de uma investigação, de acordo com a Lei, feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, que desconhecia por completo os factos. Ou seja, em bom rigor e a partir do momento em que é lançada a suspeição sobre o mais alto responsável do País, o processo deveria ter sido remetido de imediato para o a mais alta instância judicial. Tal não aconteceu. Ao invés, a Procuradoria-Geral da República abriu um mega-processo contra mais de meia centena de jornalistas por alegada “violação do segredo de Justiça”. Não deu em nada.

EURICO DE MELO, PAULO PORTAS, ANTÓNIO VITORINO, ISALTINO DE MORAIS, ETC, ETC…

Passando ao que interessa: o que dizia a famosa carta? Basicamente isto: “Serve o presente para informar V. Exª. Tudo e de todas as pessoas que se encontram envolvidas no caso de pedofilia da Casa Pia de Lisboa: Dr. Eurico de Melo, Paulo Portas, António Vitorino, Mota Amaral e Isaltino de Morais, este com mulheres, filhos, rapazes e raparigas novas vindas do bairro da Pedreira dos Húngaros, no Alto de Algés, presentemente demolido, em verdadeiras orgias e bacanais, num apartamento de 4 ou 5 divisões, não me recordo já bem, na Rua das Piscinas, nº 5 - 6º Esquerdo, em Miraflores-Algés, pois este apartamento foi oferecido pelo construtor daquele bloco de apartamentos a um funcionário da Câmara de Oeiras, que se chama Ramos Luís. Pois eu estive lá, onde não faltava a boa comida e bebida, onde comíamos, bebíamos e dançávamos todos nus e fod***** livremente com quem quiséssemos. Dr. Bagão Félix, Paulo Portas, Jorge Sampaio, Leonor Beleza, Leonor Coutinho, Helena Roseta, Macário Correia, Marques mendes e outros, num apartamento de 10 assoalhadas, sito na Avª. da República, 28-4º andar, em Lisboa (…). Os carros que transportavam miúdos do Jardim de Belém, do Campo Grande, da Praça da Figueira eram o Jaguar do Paulo Portas e o Rolls-Royce da Presidência da República.” A carta que pelos vistos alguém desejou que fosse pública ao mantê-la no processo, vai mais longe, fazendo descrições pormenorizadas dos “dotes” orais de Leonor Beleza.
Certo, é que o Ministério Público não fez qualquer diligência para despistar a veracidade ou mentira desta denúncia. Teria sido elementar que alguém tivesse ido ao prédio da Av. da República ou que o referido Ramos Luís tivesse sido identificado e interrogado. Mas não. A investigação ficou-se pelo juntar da carta ao processo.
E há um nome que sobressai em toda a investigação e que, curiosamente, nunca foi interrogado pelas autoridades: Paulo Portas, que quando o escândalo rebentou era ministro da Defesa. Estava, naquela altura, a ser investigado no âmbito do caso “Universidade Moderna” e negociava a compra de dois submarinos para a Marinha portuguesa.
As referências ao actual número 2 do Governo no âmbito do Processo Casa Pia são várias e, segundo Ricardo Oliveira, uma das principais testemunhas do mediático caso, as referências ao governante que fez, bem como outras testemunhas, terão sido censuradas pelos investigadores, algo que o próprio Carlos Silvino, arguido do processo, também afirmou na entrevista que me deu e que foi publicada na revista “Focus”. De facto, alguns jovens interrogados pela PJ no âmbito do caso da alegada rede de pedofilia envolvendo nomes famosos referenciaram Paulo Portas como possível abusador. Na maioria dos casos não foi dada qualquer credibilidade aos depoimentos e outros foram remetidos para o “apenso A” (cartas anónimas), apesar de, com se verá já de seguida, algumas não serem anónimas.

NARANA COISSORÓ E O SELECCIONADOR NACIONAL DE FUTEBOL

Assim, Rosa Mota, a inspectora que coordenava a 2ª Secção da PJ, directamente sob as ordens do procurador João Guerra e das procuradoras Cristina Faleiro e Paula Soares (a partir de Fevereiro de 2003 a PJ afastou-se da investigação do Processo Casa Pia), recebeu uma carta de uma pessoa que se identificou como Eugénio Afonso de Bessa Sanches da Gama, residente na Rua Pedro Escobar, nº 154 – 2D Porto.
A missiva dizia o seguinte: “Na rede de pedofilia estão metidas 200 pessoas, entre elas o deputado Narana Coissoró e o senhor ministro Dr. Paulo Sacadura Cabral Portas. Isto vai ser a barracada total. Lamento profundamente os homossexuais e bissexuais irmãos Cerqueira Gomes andarem a violar mulheres e miúdos e ninguém os prender.”
Um outro indivíduo também efectuou uma denúncia que foi enviada para o apenso das cartas anónimas, muito embora se tenha identificado como sendo Alexandre Silva e garantido ter sido abusado entre 1995 e 1998: “Eu era frequentemente abusado por duas pessoas importantes: Paulo Portas (actual ministro da Defesa*) e António Oliveira (ex-seleccionador nacional). (…) O Paulo Portas levava-me no carro dele para um descampado, onde me violava seriamente. Ainda me lembro dos risos irónicos dele, que me marcaram e que dificilmente esquecerei. Gostava que se fizesse justiça sobre estes dois pedófilos brutos, insensíveis e imorais.” A equipa da PJ chegou a interrogar um ex-casapiano com este nome que negou ser o autor da carta e esta foi simplesmente enviada para o “apenso A”.
Mas as referências a Paulo Portas não se ficam por aqui. Um indivíduo, que se identificou como Carlos Fragoeiro, também não esteve com meias medidas e efectuou a seguinte denúncia: “Sem qualquer outro motivo que não seja apenas ajudar a investigação e sem qualquer intenção difamatória, venho apresentar o meumeu que me refiro é então o actual ministro da Defesa Paulo Portas, sendo que este manteve uma relação com um rapaz menor de idade, morador em Alfragide, tendo aí sido visto por diversas vezes na sua companhia. Durante algum tempo fez deslocações no seu veículo desportivo (de marca Mazda) a esta localidade para o buscar e levar até que foi expulso à pedrada por um grupo de amigos revoltados com a situação do suposto abuso sexual de uma criança (jovem menor).” A equipa de investigação diz que tentou contactar com Carlos Fragoeiro, mas que não conseguiu qualquer resposta até ao dia 24 de Junho de 2003, pelo que apensou a denúncia e não foi feita mais nenhuma diligência.



VALENTE DE OLIVEIRA , TERESA COSTA MACEDO E DIAS LOUREIRO

Também Isabel Maria Raposo, a dita meia-irmã de Carlos Silvino, cujo depoimento consta do Volume 09 do processo, disse a uma das procuradoras que investigou o caso da suposta rede de pedofilia: “(…) recebeu três chamadas telefónicas. Uma era de uma pessoa que não se quis identificar, outra era de um tal Luís Sarmento e outra de um Paulo… cujo apelido não recorda. Nestas chamadas as pessoas referiram à depoente que tinham provas, papéis e fotografias, que envolviam figuras altas do país. Entre esses nomes consegue recordar-se de: Valente de Oliveira, Martins da Cruz, Paulo Portas, Teresa Costa Macedo, Maldonado Gonelha, Adelino Salvado, Pedro Roseta, Dias Loureiro e os irmãos destes últimos. Mais referiram que havia pessoas da Opus Dei e Bispos envolvidos neste caso e que, portanto, não era só o Carlos que estaria nisto e que estavam do lado dele e que ele não devia pagar por todos. Mais referiram que o Carlos era o que tinha menos importância no meio disto tudo e que, caso as coisas não corressem bem, estes nomes iriam ser publicados.” Mais tarde a meia-irmã de Silvino enviou uma lista à procuradora Paula Soares com uma lista onde constavam estes nomes.

O PROFESSOR MARCELO

No processo surge ainda o mediático professor e comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa, referenciado na fase de inquérito como tendo abusado de um menor e presenciado actos de pedofilia numa casa em Lisboa. Foi acusado, a 8 de Abril de 2003, por uma professora, residente na Margem Sul do Tejo. Segundo a denúncia da docente, ela foi levada à referida casa pelo pai, e lá estaria o professor que assistiu, nas palavras desta mulher, a abusos de menores, tendo ele próprio abusado de um. A procuradora Paula Soares, uma das titulares do inquérito (juntamente com o procurador João Guerra e a procuradora Cristina Faleiro), foi quem recolheu este depoimento, que, mais tarde, mandou simplesmente apensar ao inquérito principal no “anexo AU”. A mesma mulher acusou ainda o ex-ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, de ter abusado de menores (de ambos os sexos) numa casa localizada no Estoril, onde a testemunha assumiu ter agredido, com um ferro, uma outra mulher que tentou ter relações com ela, não sabendo se a matou (possível homicídio?).
A procuradora Paula Soares considerou que os factos denunciados eram muito antigos e não estavam relacionados com nenhum dos arguidos, suspeitos ou ofendidos do inquérito da rede de pedofilia, pelo que não ordenou qualquer diligência investigatória, nomeadamente que se procedesse ao interrogatório do pai da suposta vítima a fim de se apurar que casa era aquela e quem era o seu proprietário.
Confrontado por mim com esta acusação, Marcelo Rebelo de Sousa mostrou-se surpreendido: “Nunca fui interrogado por ninguém sobre essa matéria. Nem sabia que tinha sido referenciado. Tinha conhecimento que a minha fotografia aparecia num álbum que foi mostrado às vítimas e até achei isso muito bem. De qualquer forma, essa acusação não faz o mínimo sentido. Não conheço essa pessoa de lado nenhum.”

VERDADEIROS PARA CONDENAR UNS E MENTIROSOS PARA ACUSAR OUTROS

Inegável é que muitos dos testemunhos e denúncias recolhidos pela equipa de investigadores que trabalharam na fase de inquérito do processo foram desvalorizados, apesar de alguns deles terem testemunhado em tribunal contra alguns dos arguidos que foram a julgamento, nomeadamente contra Ferreira Diniz, Jorge Ritto e Carlos Cruz. Uma das testemunhas que acusou estes três arguidos (Ricardo Oliveira, baptizado por alguma Comunicação Social como João A.) denunciou à PJ outros alegados abusadores, nomeadamente Paulo Pedroso, Ferro Rodrigues, Jaime Gama, Fernando Chalana e Carlos Manuel, tendo mesmo indicado uma casa em Cascais, no Bairro do Rosário, onde terá sido abusado e filmado em práticas sexuais por Ferro Rodrigues, Jaime Gama e Jorge Ritto. Ricardo Oliveira veio depois admitir que mentiu em tribunal e que inventou isto tudo movido pelo dinheiro, sendo instigado em alguns casos por pessoas ligadas à investigação e pela própria Catalina Pestana, ex-provedora da instituição.
Uma outra testemunha/vítima, que acusava todos os arguidos de abusos na casa de Elvas, denunciou à PJ Carlos Mota, antigo “assessor” de Carlos Cruz. As testemunhas que diziam ter sido abusadas em Elvas referiram também à PJ abusos praticados por outras pessoas, nomeadamente por outros funcionários da Casa Pia, por colegas mais velhos e pelo antigo provedor Luís Rebelo, demitido do cargo na sequência do escândalo. Curiosamente, apesar de ser referenciado nos autos como abusador e de ter estado mais de duas décadas à frente da Casa Pia, nomeadamente na altura em que terão ocorrido os abusos que foram julgados em 2010, o ex-provedor nunca foi interrogado pelas autoridades policiais. O julgamento sobre os supostos abusos em Elvas acabou por ser repetido já este ano e os supostos abusadores foram todos ilibados. A casa de orgias, de repente, desapareceu do mapa. E ninguém colocou em causa o resto do processo, apesar de se ter percebido que estavam a mentir. Se o que aconteceu (ou melhor, não aconteceu) em Elvas é mentira, como é possível que estas mesmas supostas vítimas tenham servido para condenar na mesma os arguidos noutros locais, isoladamente, e agora em Lisboa e Amadora?


JOAQUIM MONCHIQUE, FRANCSICO LOUÇÃ E MEDINA CARREIRA

Outros jovens foram claros, quando interrogados pela equipa que investigava a pedofilia na Casa Pia de Lisboa, em denunciar como alegados abusadores de menores Joaquim Monchique, Francisco Louça, Medina Carreira, Narana Coissoró, Paulo Portas, Vítor de Sousa e Carlos Monjardino, entre outros. Todos foram acusados pelas testemunhas/vítimas como frequentadores assíduos do Parque Eduardo VII, onde “arranjariam” os menores de quem abusavam. Nada disto foi investigado.

FERNANDO PESSA E JOÃO QUINTELA
Quem também contribuiu para engrossar a lista de nomes de suspeitos de pedofilia foi a jornalista Felícia Cabrita, autora da notícia que esteve na origem do escândalo. Ouvida pelas autoridades a 16 de Janeiro de 2003, duas semanas antes da detenção de Carlos Cruz, Hugo Marçal e Ferreira Diniz, a jornalista revelou que tinha denúncias contra dois cozinheiros da Casa Pia, Jorge Ritto, Carlos Cruz e Fernando Pessa. Felícia entregou ainda um papel que lhe terá sido dado pela antiga secretária de Estado Teresa Costa Macedo, onde aquela denunciava o advogado Lawdes Marques, os drs. Eduardo Matias e André Gonçalves Pereira, os embaixadores António Monteiro e Brito e Cunha, bem como Carlos Cruz e João Quintela. Sabe-se agora que estes nomes lhe foram fornecidos num papel manuscrito que a ex-secretária de Estado da Família lhe passou, no intervalo de um programa televisivo.
Curiosa não deixa de ser a afirmação pública de Carlos Silvino: “Quando um dos inspectores me mostrou a fotografia do Paulo Portas para ver se eu o identificava o inspector Dias André disse logo: “Esse não interessa. Esse já toda a gente sabe que é maricas!…”

Carlos Tomás

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